Uma política industrial para fortalecer o direito à saúde

O contingente de brasileiros, 150 milhões de pessoas, que depende exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS) para ter acesso ao atendimento médico-hospitalar é superior à população da Rússia e, se fosse um país, ocuparia o nono lugar no mundo em número de habitantes. 

Tais comparações demonstram a dimensão do desafio de prover saúde universal gratuita, como estabelece nossa Constituição. Cabe acrescentar que o atendimento a essa demanda não deve restringir-se ao aspecto quantitativo, abrangendo também a qualidade, pois, independentemente da lei, estamos falando de um direito humano fundamental. 

Não é sem razão que o SUS é um sistema público de saúde praticamente sem similar no mundo, cumprindo papel fundamental, como se viu durante a pandemia e como se observa cotidianamente nas redes ambulatoriais, unidades básicas de saúde e hospitais a ele conveniados. Em alguns aspectos, como no processo de vacinação, o sistema já atingiu o estado da arte, mas é preciso que avance em várias frentes, para que se garanta a necessária excelência a todos os serviços.  

Para isso, o aporte tecnológico, de equipamentos e dispositivos médicos de toda a rede é fundamental, considerando que esses avanços estão cada vez mais atrelados à medicina de qualidade e à capacidade de atender mais e melhor. Visando à viabilidade desse avanço, é importante que a própria indústria brasileira do setor da saúde transforme-se em player relevante nas cadeias globais de valor, de modo que seja capaz de ampliar seu nível de competitividade sistêmica, ganhando mais musculatura e capacidade de atender de modo pleno às demandas internas.  

Ou seja, é premente uma política industrial para o setor da saúde, de modo a tornar o segmento de dispositivos médicos mais competitivo. Nesse sentido, o primeiro pressuposto a ser considerado é que atendimento médico-hospitalar não é despesa. Trata-se de investimento numa prioridade para o ser humano. O setor representa hoje 10% do PIB, mas há uma grande capacidade represada de gerar empregos e renda, o que também contribui para a melhoria da qualidade da vida, por meio da inclusão pelo trabalho digno, o mais eficaz e legítimo processo de geração e distribuição de renda. Cabe que se entenda de modo definitivo em nosso país que a saúde necessita de uma política com ações de longo prazo, previsibilidade e caráter sustentável.  

Um dos aspectos importantes nesse sentido é que a reforma tributária em curso contemple tratamento diferenciado para a saúde, assim como se observa na maioria dos países integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que não tributam o setor ou lhe contemplam com alíquotas extremamente baixas. Hoje, os impostos são o maior gargalo para novos investimentos em nosso país. O irônico nessa situação é que, exatamente em função da grandeza do SUS, o Estado é o que mais arca com os ônus tributários, nos três níveis federativos. Afinal, é o maior comprador.  

Alíquotas mais altas de impostos podem representar aumento de preços de até 40% e de gastos superiores a 50% em relação ao que é renunciado pelas isenções. Assim, a redução na taxação contribuiria para que União, estados e municípios pudessem comprar mais equipamentos e dispositivos para o sistema, com os mesmos recursos hoje investidos.  

Também é imprescindível que o país tenha uma política industrial que atraia e crie mecanismos para incentivar a produção no Brasil, independentemente do capital de origem da indústria. O mais importante é que esse processo de industrialização atenda à demanda da saúde e, ao mesmo tempo, crie empregos e renda e contribua para a inclusão socioeconômica. 

Foi exatamente com o propósito de instituir uma adequada e moderna política industrial para a saúde que três entidades de classe ligadas ao setor formularam uma proposta, hoje em mãos dos governos estaduais, municipais e federal, bem como do Poder Legislativo. São signatárias do documento: Associação Brasileira da Indústria de Tecnologia para Saúde (Abimed); Associação Brasileira da Indústria de Dispositivos Médicos (Abimo); e Associação Brasileira de Importadores e Distribuidores de Produtos para Saúde (Abraidi). As proposições que apresentamos são as seguintes: 

  1. Priorizar as políticas de saúde. A pandemia reforçou o que já se sabia: a saúde é tema central para a população brasileira. A Constituição (artigo 196) é mandatória ao delegar ao Estado o dever de garanti-la, por meio de políticas sociais e econômicas. Assim, a Política Industrial para o setor é o meio para esse objetivo.
  2. Fazer o uso inteligente do poder de compra do estado. Estimular a inovação e a economia de escala e de escopo das empresas presentes no Brasil, com isso assegurar o fornecimento (com preços e custos compatíveis) e o fluxo financeiro previsível para as partes, fomentando a isonomia competitiva.
  3. Reestruturar o diálogo permanente no âmbito do Complexo Econômico e Industrial da Saúde (CEIS). Promover a cooperação estruturada entre o Estado e a iniciativa privada de forma perene e permanente, para além de governos, com a governança do Ministério da Saúde e a participação de outros (Economia, Ciência e Tecnologia, Desenvolvimento, Indústria).
  4. Transformar o Brasil em protagonista nas cadeias globais de valor de dispositivos médicos. Melhorar a inserção competitiva internacional, aproveitando as transformações geopolíticas recentes, estimular a consolidação da indústria instalada no Brasil como fornecedora de soluções, tecnologia e produtos iniciando pela América Latina e para o Caribe, onde já está presente.
  5. Estimular a pesquisa, o desenvolvimento e a inovação tecnológica. Ampliar os recursos públicos e privados em PD&I. Proibir contingenciamentos de verbas destinadas à inovação. Aprimorar a Lei do Bem. Trazer segurança jurídica aos ordenadores de despesas e aos contratantes das encomendas tecnológicas.  
  6. Valorizar a convergência do marco regulatório. Reduzir a complexidade das normas e as sobreposições de funções na burocracia; diminuir os custos de registros e de homologação; e utilizar as experiências internacionais das agências reguladoras para acelerar a convergência de normas e procedimentos ampliando a adesão às Boas Práticas Regulatórias.
  7. Financiamento – crédito em condições adequadas. Viabilizar financiamentos em condições adequadas (prazos, garantias e custo) para o CEIS. Envolver agentes de fomento nacionais e regionais para que possam dar suporte à inovação, comercialização e democratização do acesso.
  8. Atingir as metas da Agenda 2030 da ONU com base na saúde. Impulsionar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), a partir do CIES e da Saúde 4.0, sobretudo com o uso da telemedicina, big data, digitalização em nuvem e por meio da interoperabilidade, ampliando o acesso à saúde em todo o território nacional de forma equânime. 
  9. Sistema tributário – adotar princípios pró-competitividade e pró-saúde. Adotar os princípios da Isonomia e da Essencialidade na Reforma Tributária que vier a ser aprovada, acatando a recomendação da OCDE de reduzir a carga fiscal sobre a saúde. 

Com a concretização prática dessas propostas, entendemos que o Brasil daria um imenso passo no desenvolvimento da área da saúde, tendo condições muito viáveis de dotar a rede pública, tanto ambulatorial quanto hospitalar, com equipamentos e dispositivos em quantidade e qualidade suficientes para garantir um salto expressivo de excelência, produtividade e atendimento à população. Teríamos, com certeza, não apenas o maior, como provavelmente o melhor, sistema de atendimento do mundo.  

Cabe lembrar que o SUS nasceu juntamente com a redemocratização do Brasil nos anos 80. Resulta de princípio da Constituição de 1988 (artigo 196), que dedicou um capítulo inteiro à saúde, determinando que ela deveria ser universal, gratuita e de acesso igualitário a todos. A lei que cumpriu essa cláusula da Carta Magna, criando o sistema, é a nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Assim, fica muito claro que o atendimento médico-hospitalar não é e jamais pode ser entendido e gerido como ação específica de governos. É, sim, uma política pública de Estado. É exatamente isso que preconizamos!  

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