Gestão da cadeia de fornecimento, o calcanhar de Aquiles de toda agenda ESG

Pouco se discute atualmente sobre o principal “calcanhar de Aquiles” de toda e qualquer agenda ESG, independentemente do tamanho e setor de atuação da organização: a gestão da cadeia de suprimentos/fornecimento ou, em inglês, supply chain.

Gerir a cadeia de valor de qualquer organização é complexo, justamente por envolver uma quantidade enorme de players que podem influenciar (in)direta o negócio de qualquer empresa que os contratam. Por isso, há grande necessidade de serem frequentemente monitorados e engajados para evitar exposição da empresa contratante a riscos jurídicos, operacionais, financeiros e reputacionais.

Compreendendo essa necessidade, a Alemanha aprovou, em 16 de julho de 2021, a Lei de Diligência nas Cadeias de Fornecimento (LDCF), denominada “Gesetz über die unternehmerischen Sorgfaltspflichten zur Vermeidung von Menschenrechtsverletzungen in Lieferketten” (coloquialmente referenciada como “Lieferkettensorgfaltspflichtengesetz” ou LkSG), que impõe obrigações de due diligence para a prevenção de violações de direitos humanos nas cadeias de fornecedores, estrangeiros ou não, e que entrará em vigor em janeiro de 2023, de forma a corrigir práticas inadequadas e, até mesmo, encerrar eventuais práticas ilegais com o rompimento de relações comerciais com empresas que não se adequem às exigências.

A LDCF traz, pela primeira vez, obrigações gerais de due diligence em relação aos fornecedores. Antes, essas obrigações existiam apenas em algumas áreas específicas, como no comércio de diamantes brutos ou minerais provenientes de zonas de conflito[1].

A LDCF traz como definições de cadeia de fornecimento (§ 2 (5) da LDCF), todos os produtos e serviços de uma empresa, incluindo todas as etapas, no país e no exterior, necessárias para fabricar produtos e fornecer serviços, desde a extração da matéria-prima até a entrega ao cliente final. Como “fornecedor direto” (§ 2 (7) LDCF) considera a parte de um contrato de fornecimento de bens ou prestação de serviços, cujo fornecimento é necessário para a fabricação do produto da empresa ou para o fornecimento e utilização do serviço em questão. Por sua vez, “fornecedor indireto” (§ 2 (8) LDCF) é qualquer empresa que não seja um fornecedor direto e cujos fornecimentos sejam necessários para a fabricação do produto da empresa ou para o fornecimento e utilização do serviço em questão.

Assim, seja para o tomador dos serviços, seja para os fornecedores diretos e indiretos, a LCDF impõe os deveres de compliance com especial enfoque em coibir as seguintes práticas ilegais: trabalho infantil (§ 2 (2) N° 1 e 2 LDCF); trabalho análogo à escravidão (§ 2 (2) N° 3 e 4 LDCF); descumprimento das normas trabalhistas (§ 2 (2) N° 5 LDCF); desrespeito à liberdade de associação (§ 2 (2) N° 6 LDCF); discriminação, inclusive quanto ao tratamento desigual com base em raça, gênero, nacionalidade, origem social, idade, saúde ou crença religiosa (§ 2 (2) N° 7 LDCF); prejuízo à base natural da vida através da poluição ambiental (§ 2 (2) N° 9 LDCF); despejo ilegal e tomada ilegal de terras (§ 2 (2) N° 10 LDCF); violação de obrigações ambientais (§ 2 (3) LDCF), entre outras.

Nesta condição, a LDCF traz a necessidade de se adotar: um sistema interno de gerenciamento e análise de riscos (§ 4 (1) e § 5 LDCF); medidas preventivas e corretivas, se necessárias, inclusive, no processo produtivo de seus fornecedores (§ 6 (1), (3) e (4) e § 7 (1) a (3) LDCF); elaboração de relatórios anuais de compliance públicos (§ 10 LDCF); comprovar a implementação de procedimentos internos adequados para denúncia e reclamação (§ 8 LDCF); e informar ao público em geral os potenciais impactos negativos do seu negócio no que se refere a direitos humanos (§ 10 (2) LDCF).

A análise de riscos mencionada acima deverá  ser realizada anualmente e toda vez em que a empresa introduzir novos produtos, projetos ou segmentos de negócios (§ 5 (4) LDCF). É importante ressaltar que o objetivo da análise não é apenas detectar riscos na própria área de negócios da empresa, mas também dos fornecedores diretos (nacionais e estrangeiros) (§ 5 (1) LDCF).

Nesta linha, em 17 de agosto de 2022, a Agência Federal de Economia e Controle de Exportação (Bundesamt für Wirtschaft und Ausfuhrkontrolle – BAFA), autoridade competente para a supervisão do cumprimento da LDCF, publicou um manual com orientações para a implementação da análise de riscos (Handreichung zur Umsetzung einer Risikoanalyse nach den Vorgaben des Lieferkettensorgfaltspflichtengesetzes)[2]. Segundo a BAFA, a análise de riscos em relação aos fornecedores é composta por dois passos: uma análise de riscos abstrata que leva em consideração, dentre outros, os riscos específicos da área em que os fornecedores atuam e uma análise de risco concreta, que tem por objetivo detectar, ponderar e priorizar os riscos concretos em relação ao fornecedor (§ 5 (2) LDCF)[3].

Baseado nos resultados da análise de riscos, a empresa deverá estabelecer medidas preventivas na própria área de negócios (§ 6 (3) LDCF) e em relação aos fornecedores diretos (§ 6 (4) LDCF), como, realizar due diligence na seleção de um fornecedor (§ 6 (4) N° 1 LDCF) e a implementação de medidas contratuais (§6 (4) N° 2 a 4 LDCF).

Com efeito, em relação às medidas contratuais, o § 6 (4) N° 2 LDCF estipula que o contrato entre a empresa e o fornecedor contenha cláusulas através das quais o fornecedor garanta o cumprimento de direitos humanos e ambientais. Além disso, o § 6 (4) N° 3 LDCF prevê a implementação de treinamentos e cursos para garantir que o fornecedor cumpra as garantias contratuais estipuladas no § 6 (4) N° 2 LDCF. Por fim, o § 6 (4) N° 4 LDCF exige mecanismos contratuais adequados para conferir a conformidade do fornecedor com a estratégia de direitos humanos.

Conforme adiantado, resta claro que as medidas preventivas a serem implementadas dependem dos resultados da análise de riscos. Caso se detecte, por exemplo, elevado risco relacionado a um fornecedor direito, a BAFA recomenda incluir cláusulas nos contratos que possibilitem investigações locais em caso de indícios de violação de direitos humanos ou ambientais, e, sendo uma violação detectada, a interrupção temporária ou permanente da relação contratual com o fornecedor[4].

Isto posto, é certo que a LDCF terá forte impacto no mercado brasileiro, pois o seu regramento será vinculante não apenas às empresas subsidiárias de empresas alemãs que atuam em solo brasileiro, mas, igualmente, às empresas brasileiras que atuam como fornecedoras de bens ou serviços para empresas com sede na Alemanha.

Até porque, não se pode esquecer, esta relação envolve uma possível responsabilidade indireta de qualquer empresa pelos atos de seus fornecedores, ponto considerado extremamente sensível e o “calcanhar de aquiles” da agenda ESG, que conforme amplamente consolidado nos tribunais brasileiros, toda empresa poderá ser responsabilizada civil ambiental e social indireta pelo dano de terceiros.

A propósito, este aspecto foi discutido na edição da lei, de forma a gerir a extensão da responsabilização civil indireta por eventuais danos causados por terceiros no processo produtivo, especialmente em outros países. Diante disso, a lei prevê que a violação de obrigações legais não enseja a responsabilidade civil (§ 3, (3)LDCF), sendo, entretanto, mantidas as previsões de responsabilização já previamente existentes na legislação alemã, o que será preciso aguardar o posicionamento dos tribunais alemães quanto à forma de interpretação da nova legislação no que diz respeito a uma eventual ampliação da extensão da responsabilidade civil.

Fora as medidas previstas na lei, será de extrema importância o treinamento de funcionários para o compliance com as previsões legais e adoção de medidas de due diligence para fins de identificação, prevenção e reparação de riscos socioambientais no âmbito da cadeia produtiva da companhia, sem contar o aditamento contratuais já existentes.

O prazo para adaptação é apertado, de praticamente um semestre, embora as condutas a serem adotadas sejam diversas. Em caso de inadimplemento, poderá ensejar a aplicação de multas de até cinco milhões de euros se constatada a ausência de mecanismos para monitoramento de riscos ou falha na sua condução. Em casos de omissões a adoção de medidas preventivas diante da identificação de riscos, tais multas podem alcançar o valor de 8 milhões de euros. Outros tipos de violação por empresas de grande porte (com faturamento anual acima de 400 milhões de euros) podem ensejar ao pagamento de multas de até 2% do seu faturamento anual.

Em outras palavras, da mesma forma que a agenda ESG foi liderada pela Europa, é muito provável que as novas limitações regulatórias europeias trarão grande impacto por aqui, o que implicará na necessidade de as empresas nacionais revisarem as suas políticas e modelos de negócio. Assim, entendemos que é apenas uma questão de tempo para lermos a seguinte manchete: “Brasil regula a cadeia de fornecedores”.


[1] Gehling, Christian et al., Das neue Lieferkettensorgfaltspflichtengesetz – Umsetzung in der Unternehmenspraxis, in: Corporate Compliance Zeitschrift 2021, p. 230.

[2] Bundesamt für Wirtschaft und Ausfuhrkontrolle, Handreichung zur Umsetzung einer Risikoanalyse nach den Vorgaben des Lieferkettensorgfaltspflichtengesetzes, Data da publicação: 17.08.2022; Disponível em: https://www.bafa.de/SharedDocs/Pressemitteilungen/DE/Lieferketten/2022_06_handreichung.html; Acesso em: 15 de outubro de 2022.

[3] Bundesamt für Wirtschaft und Ausfuhrkontrolle, Handreichung zur Umsetzung einer Risikoanalyse nach den Vorgaben des Lieferkettensorgfaltspflichtengesetzes, p. 14.

[4] Bundesamt für Wirtschaft und Ausfuhrkontrolle, Handreichung zur Umsetzung einer Risikoanalyse nach den Vorgaben des Lieferkettensorgfaltspflichtengesetzes, p. 18.

Fonte: Jota

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